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E agora José?



A propósito do poema de Carlos Drummond de Andrade

José acorda e fica na cama, minutos, sem pensar em nada, horas, com a mente detida num ponto branco, anos que se esgotam exigindo o início, uma segunda oportunidade, para remendar os erros, embora os fios acabaram. Existe a certeza de que esse corpo tem vida pelo movimento quase imperceptível do seu peito. Se não fosse pela fome, sintoma subtil de quem ainda quer andar, seria como um dos imortais de Borges: Seria como aquele inextinguível que fica deitado no chão sem se mover, sem se importar com a chuva, com o frio ou com o calor; como aquele eterno que permanece com um ninho no ventre, com a pele cinzenta, sem falar, tentando esquecer a vida. Só pela exigência do corpo, forte fome, é que se põe de pé, vagarosamente, e volta a caminhar.

Na rua, as pessoas olham para ele com pena. Às suas costas o rumo dos homens o trata por perdedor, vencido, e é o que ele é. Antes, há séculos, todas as mulheres o admiravam, gostavam do brilho nos seus olhos, da sua doce e viril voz, da sua força para deter as pancadas dos outros, da sua atitude para ir à procura de outras vias possíveis, da sua ternura... Ele emanava vida.

Agora José já deixou de ser um homem, parece um ente acidentado, um desacerto que quebra a ideia de conformidade com esta realidade: não sorri, não conversa, não olha para os outros, nem fuma, nem sequer bebe, só contempla o mundo em fuga e caminha.

Como pode caminhar? Como sem cair? Como sem morrer?

Ainda existem pessoas que o respeitam pelo que foi, ajudam-no nestes tempos tempestivos com a expectativa de o ver, se calhar, como uma fotografia de si antes de deixar a sua alma. É a esperança coletiva que o detém no ar.

José foi, é, um dos “urinados pelo Diabo” que menciona Galeano, e fartou-se do seu estado. Começou a escutar o vento das desvantagens sociais, reconheceu, nos olhos das crianças, o seu direito a indignar-se pela injustiça, abraçou o protesto, apropriou-se dos gritos de liberdade, imaginou a utopia e trabalhou para a alcançar. Falou para si e refletiu, exprimiu os seus pensamentos com a sua família, amigos e desconhecidos, prestou ouvidos às suas vozes e novamente refletiu. José construiu planos para conseguir dignidade nesta vida e fez muitas coisas, muitas, quase demasiadas embora nunca suficientes.

Com o tempo o coração de José oprimiu-se. As vidas passaram pelos anos, os anos pesaram na vida, a voz desgastou-se, os olhos perderam a direção, os triunfos eram muito efémeros. As dores pelos desaparecidos, pelos mortos, pelos torturados, pelas traições, pelas corrupções, pelos actos falidos, e pela indiferença, fizeram-se insuportáveis.

Agora não encontra discursos para flutuar, não pode olhar para o futuro, não pode gritar, não pode ler, não pode morrer porque até os seus meios terminaram para isso.

Comentarios

  1. Vidas, gentes, sentimentos, expressos por palavras cunhadas por leves mas firmes toques de teclas,também elas efémeras...Porém com tenacidade suficiente para se entranharem na mente de um solitário, mero espectador!
    A mim, agrada-me o suspiro que se extrae em cada uma das frases e tal como José, considero não serem suficientes para acalmar a minha curiosidade!
    Sejam então cunhadas mais palavras, retratadas mais vidas, mais gentes, mais sentimentos e aqui permanecerei para devorá-las com a subtileza que me seja dotada!

    ;)

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  2. :)

    Nanda, eu quero ler o que escreves... ok???

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  3. mmm... ok Nit@, esquece o anterior. Eu quero ler-te

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  4. Este comentario ha sido eliminado por el autor.

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